quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

IMPEDIR “CIDADE DE DEUS” À SOMBRA DO DEDO DE DEUS

IMPEDIR “CIDADE DE DEUS” À SOMBRA DO DEDO DE DEUS

Denilson Cardoso de Araújo

Para bem e mal, “Cidade de Deus” de Fernando Meirelles, foi um marco. Disputou o Oscar por dois anos, como filme estrangeiro e depois, nos prêmios gerais, com 04 indicações. Criou um filão, repetido em celulóide, vídeo, novelas e etc, ad nauseam. A sua opção estética, involuntariamente, deu evidentes ares épicos àqueles meninos-bandidos, cheios de tragédia. O elenco oriundo do Grupo Nós do Morro, com preparação inovadora e naturalismo inédito, completou a perfeição do impacto. Aqueles meninos existem mesmo, pensaram os mais afastados da vida real.


Mas o filme tinha também denúncia. E nos chocamos. Terrível cena final, em que, mortos os bandidos adultos ou quase adultos, surgem crianças, ou quase crianças, assumindo comandos, armas e crueldades. Terrível o cartaz com a risada de Darlan Cunha, menino, agigantada pelo ângulo da brilhante fotografia de Cesar Charlone, misturando o sadismo da infância mal terminada com o brinquedo ainda não abandonado, conjugados na arma apontada.

E O pesadelo está aí. No Rio, o torniquete das Unidades de Polícia Pacificadora está empurrando a criminalidade de morro a morro e destes à periferia, o que já inclui nossas serras. Aumenta o crime onde antes não havia e o crime se farta nesta mão de obra barata que é o menor de 18 anos. Lamento informar. “Cidade de Deus”, o filme, começa a acontecer, nesta cidade (do Dedo) de Deus. A última semana acendeu vigorosos sinais amarelos, como a chamar-nos, todos nós, às falas. Cidadãos, autoridades, conselheiros de todos os conselhos, juízes, voluntários, empresários, crianças e adolescentes! Teresopolitanos, enfim! Vimos as manchetes. “Polícia desbarata quadrilha de meninos”. “Menores entre os possíveis autores do homicídio de morador de rua”. E mais.

Quarta-feira passada, em um shopping da cidade, meia dúzia de meninos de 10 a 12 anos, incomodavam fregueses, pedindo dinheiro, lanches, etc. Não atendidos, partiam para pequenas agressões. Uma caixa de sapatos foi atirada num freqüentador. Na sexta feira, um taxista noticiava à minha esposa, recente ocorrência de “arrastão”, em que uma dúzia de meninos furtaram um senhor de idade que acabara de sacar a aposentadoria. No Alto, clientes do comércio próximo ao Higino acostumaram-se aos grupos de meninos intimidando os passantes, incomodando libidinosamente as universitárias, fazendo pequenos furtos, e trazendo temores de arrastão. Praças da cidade (Barra, Ginda Bloch, Olímpica) são noticiadas reiteradamente, como pontos de encontros nocivos de adolescentes, com consumo de bebida e entorpecentes, e assédios indevidos. Nossos morros observaram meninos andando com armas na cintura. Num deles, não faz muito, caminhava um traficante mirim, com uma pistola de ouro e outra de prata, atravessadas na bermuda.

A Vara da Infância, na semana que se encerrou, mandou oito adolescentes para a internação, no Rio. Tristíssimo recorde! Meninos, meu Deus! Todos com histórias iguais: a maioria pretos ou mulatos, famílias destruídas, pai ausente, violência familiar, saúde precária, educação deficiente, consumo de drogas, morada paupérrima. Crianças brincando de bandido e assim, se tornando bandidos efetivos, porque não se lhes constrói muita alternativa!

A situação é muito preocupante, para dizer o menos. De dentro da Vara da Infância (e do Conselho Tutelar, certamente) vemos como se agrava. A população em geral, vê fragmentos. Veemente, protesta contra o que vê, sem saber que só enxerga a pontinha do iceberg.

E passa por arrogante, a Vara da Infância, quando pede diálogo, união, parceria, e o faz há quatro anos! Passa por “ilegal”. Passa por “usurpadora” de funções - esta, a última insinuação. Enquanto a Prefeitura se cala, em notas no fim de semana o Ministério Público e o Conselho Tutelar tentam eximir-se da responsabilidade da atribuição de ilegalidades à Drª Inês. Embora seja claro que as notas tenham a boa intenção de reiterar respeito à Juíza, são estranhas, mais confirmando o que tentam desmentir. Deixa ver se me faço entender. Quem diz a mim que proferi uma mentira, de mentiroso me chama. Quem me atribui uma obscenidade, de obsceno me qualifica. Quem diz que a Drª Inês propõe acordo com ilegalidades, de “ilegal“ a acusa! É simples. É impossível desqualificar a obra (a proposta de acordo) sem desqualificar sua autora (a juíza).

As notas reiteram o afirmado, desde a acusação de ilegalidade à existência de pressões e intimidação do MP e recuos decorrentes. Delas se vê, com clareza: o CMDCA, o Conselho Tutelar e a Prefeitura decidiram, de forma “independente”, não assinar o acordo com a Vara da Infância, mas somente após o MP - por razões oficialmente desconhecidas - emitir Recomendação ameaçadora. Ora, convenhamos! E O Conselho Tutelar, dos meus queridos e por mim sempre (sempre!) reconhecidos Luís Jorge, Monica, Rafaela e Regina, emite uma nota dizendo que apenas defendiam as prerrogativas do Conselho (prerrogativas que, por sinal, por falta de aparato, não conseguem cumprir). Defendiam de quem? Assim, tornaram implícita outra imputação à Drª Inês: a de que o Acordo proposto visava a subjugar o Conselho Tutelar. Mais uma descuidada inverdade, porque se pretendia o contrário! Afinal, a sentença que determinou à Prefeitura a instalação do Conselho Tutelar é da Drª Inês Joaquina, meu Deus! E o final da nota é melancólico, pois termina narrando justamente como, em outra tentativa de acordo semelhante, foram intimidados pela Procuradoria do Município, intimidação que acataram!

O pior disso tudo é que na véspera da audiência pública de 18/12/09, após longo “namoro”, havia “noivado” e acordo haveria. Se houvera recuo, bastava avisar antes. Não deixar que a audiência, que tinha uma só finalidade - assinar o acordo - se instalasse. No dia, secretários municipais estiveram com a doutora, em seu gabinete, conversando amenidades. Ali era a hora de dizer: Doutora, a PMT mudou de posição. Não se instalaria a audiência e seguiríamos a vida. Mas não. A audiência foi instalada e a Vara da Infância foi vexatoriamente largada no altar, como uma noiva ofendida pelo noivo que, de público, além de jogar a aliança no chão, ainda a acusou descabidamente: Não caso, pois é ilegal. Instalou-se a cizânia. E houve quem reclamasse da indignação justa da “noiva” maculada.

Precisamos de entendimento. Não é pedir muito. Sequer precisamos nos gostar, porque, na verdade, metáforas à parte, não pretendemos casar. Não dormiremos juntos. Mas os que realmente amam crianças e adolescentes, trabalharemos juntos, quando o entendimento efetivo nascer. Mas é preciso compreender que nenhum ajuste completo ocorrerá, se dele se pretende a exclusão da Drª Inês. Não faz sentido. Diga-se que, depois de anos de silêncio neste particular, o Ministério Público, com a campanha pela rejeição do Acordo proposto pela Vara da Infância, finalmente se ergueu, com o diligente Dr. Afonso, e está trabalhando um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) com a Secretaria de Desenvolvimento Social e com o CMDCA. Que bom! É como, mais ou menos, disse a Drª Inês em sua nota de dezembro: pelo menos esse fruto essa confusão deixará. Afinal, na ansiedade de combatê-la, finalmente, surgiu uma ação positiva.

Mas o “TAC” não fará milagres. Papéis não realizam milagres. Pessoas unidas, de mãos dadas, abençoadas por Deus, sim. E o TAC não dispensará alguma forma de acordo com a Vara da Infância, porque a Prefeitura não terá possibilidades imediatas de abarcar todas as funções. O próprio Projeto de Lei do SINASE prevê uma transição gradual, estimada para um ano de trabalho, necessariamente conjunto.

Acho que seria bom algumas pessoas se telefonarem. Seria bom reconhecer-se injustiças. Seria bom reconhecer-se os receios - compreensíveis - que levaram ao cancelamento do Acordo. E seria bom que cessassem as acusações de corredores, absurdas, maledicentes e levianas, de que haveria interesses financeiros por detrás do Acordo! Seria bom que cessassem as desculpas para consciências atormentadas, de que a Vara da Infância foi intransigente ao retirar sua proposta já rejeitada ao final da Audiência fatídica de 18/12/09. Ora, como a Drª Inês ia participar de uma Comissão que partia da premissa de que era necessário corrigir as “ilegalidades” que ela, Juíza, profissional da legalidade, propunha! Convenhamos, isso é no mínimo desrespeitoso.

Mendigos mortos na rua são um ícone triste no Brasil. Quadrilhas de adolescentes, também. Não queremos caminhar com medo por essa cidade de tanta beleza. Vençamos, portanto, os medos, de reconhecer equívocos, de dialogar sem acusações de ilegalidade ao parceiro, de telefonar para quem é necessário, de cumprir convênios. Isso não é uma queda de braço. Está sendo uma perda de tempo. E enquanto o perdemos, valioso que é, o tempo se ri, observando o diabo fazer seu trabalho. Mas há tempo para impedir que a “Cidade de Deus” (o filme) se mude para estas montanhas. No gabinete do senhor Prefeito existe o belíssimo símbolo da Arca da Aliança. Aliança é acordo. E na arca ficavam as leis judaicas. Leis que, por tão mal interpretadas, se tornaram cárceres farisaicos, que o Evangelho de Cristo veio quebrar. E destruindo esses cárceres, Jesus disse: “Eu vim cumprir a lei”. Para quem não entendeu, Ele explicou: Não há boa lei sem amor. Não há aliança (ou acordo) sem amor. Não se cuida de crianças sem amor.
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Publicado no Diário de Teresópolis (10/02/2010)